Clara se despedia sempre com um beijo gelado do frio e
quente do café, enquanto Julio ainda se espreguiçava na cama, se enrolando nas
cobertas pedindo mais cinco minutos.
Porém, ao ouvir a porta do velho apartamento se fechando,
levantava, esfregava e preparava os olhos, colocava o café no copo, dois ou três
pingos de leite, e se arrastava até a sacada.
De lá, esperava Clara cumprimentar o porteiro, sair para a
rua, e então gritava:
Booooooom diiia minha princesa! Eu te amo!
Lá embaixo, em meio às árvores verdinhas, e o chuvisco fino,
ela olhava para cima, como se agradecesse ao amado e também a Deus, por ter
encontrado um louco que berrava por ela do 7º andar em plena quinta feira
cinzenta.
O casal se conheceu em uma noite gelada, era agosto e nos
meios de todos aqueles casacos e cachecóis, Julio que caminhava para casa da
mãe após a aula, viu Clara saindo da reitoria da faculdade. As vestimentas
escondiam quase tudo, menos o batom rosa, que demarcava meticulosamente os
lábios finos, ressaltando-os em meio aquela pele branquinha e angelical.
Aquele rosa não saia de sua cabeça, e por amigos em comum, a
vida os apresentou. Bastou um encontro para se apaixonarem.
Era mais um dia comum, sem se quer um fato atípico, tudo nas
ordens, a mesma rotina de todos sempre; a não ser pelo fato de que Clara não se
despediu do porteiro, tão pouco chegou a rua.
Julio procurava na rua, tentando entender como não vira sua
noiva saindo do lento portão eletrônico, com aquele “eu te amo” corriqueiro
engasgado na garganta, querendo sair, querendo gritar.
Ao esperar por 10 minutos, saiu lentamente da sacada
arrastando as meias e os chinelos, encafifado com o fato incomum daquela manhã.
Mal sabia Julio, que de todos os fatos, aquele seria a menor das estranhezas do
dia, da semana, do mês e do resto de uma vida.
Clara ao descer, sentiu a vida evadir-se.
E após o primeiro passo para fora do elevador, caiu. Sem
explicação, receituário ou aviso prévio. A vida a deixou, levando de supetão
seus planos, medos e carnês de crediários.
Os últimos suspiros nem foram dados, as ultimas energias,
aquele derradeiro sopro de vida serviram para um último ato.
O interfone tocou manso, como se quisesse avisar a chegada
de alguma encomenda, ou algum recado do sindico... mas era o porteiro, mal
conseguindo respirar e falar ao mesmo tempo. Seu sotaque esquecido foi se
misturando com as gírias usadas no cotidiano, fazendo de uma frase quase uma
charada.
Julio ouviu uma coisa em meio aquele turbilhão de palavras:
Dona Clara.
A caneca escorregou da mão, encontrando o chão de quina,
fazendo do mesmo um quebra-cabeça de louça velha e desenhada.
O elevador chegou quando Julio trombou com a porta da
escada, ouvindo a porta lenta se abrindo, voltou e quase em um tapa apertou o
térreo.
Ao chegar, enquanto a fresta da porta se abria lentamente,
ele se estreitava tentando escorregar por entre ela; foi quando viu o
irremediável.
Vendo Clara deitada, sabia que ela não estava mais ali,
conhecia a futura esposa... sua Clara.
Restou para ele o ultimo abraço, molhou o rosto de sua amada
com suas lágrimas, o beijo foi como aquele que recebia religiosamente todas as
manhãs. Na mão cerrada de Clara, estava o último ato, o velho batom já acabado,
aquele rosa, que ficava no fundo da bolsa, aquele pelo qual eles se conheceram.
Foi como se ao deparar-se com o fim, ela
adormeceu lembrando o começo, o começo de sua vida: aquela noite fria em que
conheceu o seu amor.